terça-feira, 19 de outubro de 2010

Alpinismo ou Andinismo? A verdade sobre os primeiros montanhistas

Vulcão Misti (5.822 m), Arequipa, Peru


Eu comecei a me interessar por montanhismo após ler o livro "No Ar Rarefeito", do John Krakauer, sobre a tragédia ocorrida no Everest em 1996, quando várias pessoas morreram e ficaram feridas por causa de um súbito mau tempo. A partir daí, passei a estudar um pouco do assunto.

A renascença trouxe ao homem europeu o interesse em explorar o planeta. Primeiramente interessados em viagens, natureza e montanhas, e mais tarde em montanhismo. O rei Pedro III de Aragão subiu o monte Canigou (2.785 m) nos Pirineus no fim do século XIII. Petrarch escalou o monte Ventoux (1.912 m) no sul da França em 1336. Usando aparatos mecânicos, Antoine de Ville conquistou o pico do monte Aiguille (2.097 m), na França, em 1492, ano do descobrimento da América. No entanto, o montanhismo alpino propriamente dito começou somente depois de Balmat escalar o Mont Blanc em 1786.

Mas durante todos estes períodos e até mesmo antes do nascimento desse misto de esporte com aventura, orgulho dos europeus, os indígenas dos Andes, sob liderança Inca e até pré-incaica, subiram muitas montanhas altas, pelo menos até o momento da conquista espanhola. Mesmo com falta de equipamentos e ferramentas, eles escalaram por sobre neve, gelo, rocha e lava até cumes com mais de 6.700 m, uma altitude que somente seria superada por escaladores modernos em 1855, quando os irmãos Schlagintweits alcançaram o pico do Abi Gamin no Himalaia.

As dificuldades técnicas provavelmente forçaram os antigos incas - fossem quais fossem suas razões para escalar - a limitarem-se quase que totalmente - quase - a picos rochosos, a maioria provavelmente vulcões. Os registros disponíveis indicam que eles escalaram com mais frequência no canto sudoeste do Peru, a única região árida o suficiente para preservar registros de chegada a cumes. Muito provavelmente eles escalaram algumas das cordilheiras orientais e do norte do Peru, mas não existem provas remanescentes.

No sudoeste do atual Peru pode-se encontrar as melhores provas de evidências cerimoniais e religiosas e até de instintos esportivos dos antigos. De acordo com restos mantidos na mina de Cailloma, um enterro Inca ocorreu no cume do Chachani (6.075 m), fato confirmado por um alemão de sobrenome Wagner, que em 1901 liderou três dias de escavações nesse cume para descobrir que o túmulo estava quase completamente saqueado (CONWAY, Sir Martin, 1901. "The Bolivian Andes", pp. 56-57. Londres).

Restos de muros de pedra ainda podem ser encontrados nas arestas do cume do Sara Sara (5.453 m). Alguns objetos de cobre também foram encontrados em suas encostas em 1941. O famoso vulcão Misti (5.822 m), que serve de cenário de pano de fundo da cidade peruana de Arequipa, também exibe construções similares. No ano de 1677, o padre dominicano Alvaro Meléndez escalou seu cume e achou entre as duas crateras traços de uma pequena casa e uma trouxa de lenha. Um viajante peruano que subiu ao mesmo ponto em 1878 constatou que as pedras para a construção da casa haviam sido trazidas de um local bem abaixo. Quando pediu uma explicação a seus carregadores indígenas sobre estes restos incas, um deles creditou o fato ao Demônio (RONDÓN, Enrique, 1937. "Expedición al Volcán Misti", pp. 42-44). Outra montanha perto dali, o Pichu Pichu (5.664 m), contém não apenas construções em vários de seus cumes, como também escadarias acima de 5.300 m, facilitando um trecho de rocha escarpada.

Mas não só no Peru foram encontradas evidências de escaladas incas. Alguns vulcões ainda mais altos do Chile e da Argentina guardam ricos tesouros. Construções de pedra e áreas cercadas para lhamas e alpacas - animais de carga e para sacrifícios - foram localizadas a 6.600 m no Llullaillaco.

Vulcão Llullaillaco (6.739 m), Argentina/Chile



Os três cadáveres mumificados e congelados com aproximadamente 500 anos de antiguidade, descobertos entre 17 e 20 de março de 1999 no vulcão Llullaillaco, entre as províncias de Salta, na Argentina, e Antofagasta, no Chile, são conhecidos como Múmias de Lullaillaco. Os cadáveres são de uma adolescente de 15 anos, conhecida como La Doncela, uma menina de 6 anos, conhecida como La Niña del Rayo, e um menino de 7 anos. A tumba principal se localizava a 6.715 m., o ponto mais alto onde tais evidências foram encontradas.

La Doncela



Múmias ricamente decoradas e ornamentadas com objetos de prata e ouro foram descobertas em outros três cumes de altas montanhas das redondezas. Muitos se perguntam se os incas também se aventuraram no Aconcágua (6.960 m), o ponto mais alto do Novo Mundo. Nenhum traço incaico foi encontrado no seu cume até hoje, mas, como se trata de uma escalada sem dificuldade técnica, muitos especulam sobre o fato, principalmente por ter sido encontrado o corpo de um guanaco, animal parente da lhama e da alpaca, pouco abaixo do cume (para descrições detalhadas de montanhismo inca, consulte os seguintes títulos: ECHEVARRIA, Evelio, 1968. "The South American Indian as a Pioneer Alpinist". Alpine Journal 73 (2):81-88 e "Los Indios Andinos Precursores del Alpinismo". Revista Andina (90): 25-26. Também, FANTIN, Mario, 1969. "A Settemila Metri: Gli Inca Precursori d'Alpinismo". Bologna.).

Estas atividades foram descobertas muito recentemente, já que não foi antes dos anos 1950 que escaladores de origem européia começaram a ficar cientes de que os incas os precederam nos cumes andinos em pelo menos quatro séculos. Inúmeras evidências são totalmente possíveis de serem achadas no sudoeste peruano, particularmente em vulcões altos situados perto de ruínas incas ou seções do famoso Caminho Inca.

Dessa forma, fica mais do que provado que o montanhismo em si começou con os incas nos Andes. Eles ainda não o encaravam como esporte de aventura propriamente dito como o concebemos hoje, mas subiram montanhas bem altas. Por isso que o sinônimo alpinismo, derivado dos Alpes europeus, é uma impropriedade. O esporte deveria ser chamar Andinismo.

Boas trilhas!

Bulha

Bibliografia:

RICKER, John F. Yuraq Janka: Guide to the Peruvian Andes Part I - Cordilleras Blanca and Rosko. 2nd edition. Alberta: The Alpine Club of Canada. 1981.
RACHOWIECKI, Rob. Climbing and Hiking in Ecuador. 1st edition. Cambridge: Bradt Enterprises. 1984.
BRADT, Hillary. Peru and Bolivia: Backpacking and Trekking. 7th edition. Guilford: Bradt Travel Guides Ltd.1998.
KRAKAUER, John. Sobre Homens e Montanhas. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.
SECOR, R.J. Aconcagua, a Climbing Guide. 2nd edition. Washington: The Mountaineers Books. 1999.
BRAIN, Yosi. Ecuador: a Climbing Guide. 1st edition. Washington: The Mountaineering Books. 2000.
COLORADO, Joaquín. Montañismo y Trekking: Manual Completo.1ª edición. Madrid: Ediciónes Desnível. 2001.
KUNSTAETTER, Robert & Daisy. Trekking in Ecuador.1st edition. Washington: The Mountaineers Books. 2002.
RACHOWIECKI, Rob, e Thurber, Mark. The Bradt Climbing and Hiking Guide. 5th edition. Guilford: Bradt Travel Guides Ltd. 2004.

sábado, 16 de outubro de 2010

A Montanha




Subo a montanha
Pontilhada de perguntas
Sei que de cima
Verei o que vivi
Porque experimentei o mundo
Antes de vê-lo de longe.
A montanha se move e lateja;
Pulsa a minha alma
Cravada de dúvidas
Que um dia foram certezas.
Eu sou a minha própria montanha.

Foto: Ivam Melo