Outro dia estava lendo o relato de um amigo, o Weverson Paulino, onde descreveu a cheia do Rio Prata, em Cavalcante, GO, durante o carnaval. O rio encheu e o grupo que meu amigo guiava não pode atravessá-lo para voltar para a cidade e tiveram que passar a noite ao relento. Isso me fez lembrar um assunto básico. Este assunto básico é a escolha do que levar na mochila.
Primeiramente gostaria de tratar de terminologia. O termo “trekking”, que é o mais utilizado para descrever a atividade de percurso de trilhas à pé, tem origem na África do Sul, na palavra “trek”. O termo passou a ser amplamente empregado no início do século XIX, pelos “vortrekkers”, primeiros trabalhadores holandeses que colonizaram a região.
O verbo “trekken” significava “migrar” e carregava uma conotação de sofrimento e resistência física, numa época em que a única forma de se deslocar de um ponto a outro na África do Sul era caminhando. Quando os britânicos invadiram a região e estabeleceram seu domínio político na África, a palavra foi absorvida pela língua inglesa e passou a designar as longas e difíceis caminhadas realizadas pelos exploradores em direção ao interior do continente. Hoje em dia o termo em africâner significa algo mais como “travessia na natureza”. Na Nova Zelândia eles usam o termo “tramp” ou “tramping”, que, se não fosse sua conotação esportiva, poderia ser traduzido como “vadiar”.
Assim, atualmente, para nós apreciadores dos esportes ao ar-livre, trekking significa, em geral, a caminhada de mais de um dia onde se carrega na mochila os apetrechos necessários para a sua caminhada, como barraca, cozinha e alimentos, ou mesmo a caminhada de um só dia.
A palavra da língua inglesa “hike”, que significa “caminhar rapidamente” é mais utilizada quando se trata de um trekking de um dia onde se anda mais leve e, geralmente, correndo. Por exemplo, um passeio bem popular entre meus amigos é o Bike’n Hike da Ponte de Pedra, em Cavalcante. Vamos de bicicleta da cidade até a fazenda Renascer, onde deixamos a bike e passamos a ir correndo (hiking) até a cachoeira do Bartolomeu, que fica na base do morro que dá acesso à Ponte de Pedra. Depois do banho de cachoeira subimos o morro e voltamos ao hiking até a Ponte de Pedra. O hiking exige preparo físico, assim como o trekking, e, mais que isso, roupas adequadas e técnicas de progressão para evitar quedas e torsões.
Feitas estas considerações, voltemos ao episódio em que o grupo do Weverson foi obrigado a bivacar (se abrigar improvisadamente ao relento). O Weverson, meu companheiro de trilhas, é um guia experiente e levava consigo comida extra, isqueiro e etc. Mas, numa trilha de poucas horas, com duração de menos de um dia, como é a trilha do Rio Prata, as pessoas tendem a negligenciar o preparo e a prevenção.
As pessoas riem de mim porque, não importa qual seja a trilha, eu levo sempre uma mochila com os itens básicos. Eu, em contrapartida, acho um absurdo qualquer pessoa que vai para a trilha calçando uma papete ou chinelo e levando nada mais além de um cantil, protetor solar, máquina fotográfica e alguma comida. É claro que uma trilha no Jardim Botânico de Brasília, um ambiente praticamente urbano e controlado, não terá a mesma necessidade de uma trilha no agreste de Cavalcante, portanto o bom senso é essencial.
Assim, várias pessoas têm suas listas de itens básicos, geralmente dez, a serem levados para a trilha. Os meus essenciais são 13, mas, dependendo do tipo de atividade e usando-se o bom senso, pode-se diminuir ou até aumentar o número de itens básicos. São eles: isqueiro, kit de primeiros socorros, cobertor de emergência, roupa seca extra, comida extra, pílulas de purificação de água ou água purificada, lanterna, telefone celular ou radiocomunicadores, repelente, protetor solar, mapa e bússola, canivete multifunção e sacos para lixo.
Os Dez Itens Essenciais foram criados por volta de 1930 pelos The Mountaineers, uma organização de escaladores e praticantes de atividades ao ar-livre baseada em Seattle, EUA. Os dez clássicos são:
1 – Mapa
2 – Bússola
3 – Óculos escuros e protetor solar
4 – Roupa extra
5 – Lanterna
6 – Suprimentos de primeiros socorros
7 – Mechas para iniciar fogo (elemento combustível inicial)
8 – Fósforos
9 – Faca
10 – Comida extra
Atualmente o mesmo grupo atualizou a lista com uma abordagem de “sistemas”, que apareceu pela primeira vez na sétima edição do livro Mountaineering, The Freedom of the Hills (The Mountaineers Books, 2003). O livro explica que o propósito da lista sempre foi o de responder duas questões básicas: primeiramente, você é capaz de responder positivamente a um acidente ou emergência? Em segundo lugar, você é capaz de passar uma noite ou mais ao ar livre de forma improvisada e segura?
Então, atualmente não se fala mais nos dez elementos essenciais, mas sim nos dez “sistemas essenciais”, que são:
1 – Navegação (mapa topográfico, bússola, altímetro e/ou GPS)
2 – Proteção solar (óculos e protetor solar)
3 – Roupa extra (uma camada extra)
4 – Iluminação (lanterna de cabeça)
5 – Suprimentos de primeiros-socorros
6 – Fogo (fósforos e algum elemento combustível que ajude a fazer e manter fogo)
7 – Ferramentas e kit de reparos (incluindo uma ferramenta multifuncional e duct-tape, conhecida no Brasil como silver-tape)
8 – Nutrição (comida extra)
9 – Hidratação (água extra, sistema de purificação ou purificador para tratamento químico)
10 – Abrigo de emergência (até um saco de lixo grande pode servir)
Meus itens essenciais também cobrem esses sistemas.
O isqueiro é essencial para fazer-se uma fogueira de emergência, devendo-se levar em consideração que fogueiras em ambientes naturais são extremamente perigosas e devem ser feitas com todo o cuidado, do qual falarei em uma próxima coluna. O ideal é que se leve o isqueiro dentro de um compartimento seco, ou estanque, e pode ser substituído por fósforos, de preferência impermeáveis, ou por uma pederneira, desde que se saiba usá-la. Para impermeabilizar fósforos, derreta cera de vela sobre eles, cobrindo-os completamente.
De todos os Dez Essenciais clássicos, talvez o que apareça menos em nossas mochilas seja o elemento que ajude a começar o fogo e a mantê-lo. No entanto, em noites geladas em que o terreno em que você se encontre esteja molhado, e você esteja tremendo de frio, talvez perto de uma hipotermia, você terá que fazer um fogo de emergência. O fire starter ideal pega fogo rápido e sustenta o calor por mais do que poucos segundos. Entre alguns bons candidatos estão serragem seca em um saco zip-loc, velas, pasta de escorvamento (um tipo de pasta de pólvora) e acendedores de churrasqueira (que vêm junto com o saco de carvão). Use a criatividade. Até resto de fibras de roupa que ficam no filtro da máquina de secar roupas pode ser usado.
O kit de primeiros socorros para uma saída de um dia não precisa ser muito complexo. Relaxante muscular, antiinflamatório, analgésico, antialérgico (para picadas de abelhas e outros insetos), antiséptico líquido e colírio são os mais básicos. Sempre podem ser acrescidas ataduras, antiespasmódicos, e etc, mas deve prevalecer o bom senso. Por exemplo, eu tenho pressão alta, por isso sempre levo meus remédios comigo.
O cobertor de emergência é essencial para, numa situação emergencial, se evitar uma hipotermia, que é a diminuição excessiva da temperatura normal do corpo. Os cobertores de emergência, ou mantas térmicas, são feitos de poliéster não deformável aluminizado, refletem o calor do corpo, e podem proteger do sol, chuva e vento. São encontrados facilmente em lojas especializadas e também vêm na versão saco, mais práticos. E servem como abrigo. Um saco de lixo pode servir, mas o barulho do vento batendo nele pode te atormentar a noite toda.
A roupa seca também é essencial para evitarmos a hipotermia no caso de termos nossas roupas molhadas. O ideal é que se leve um anoraque (casaco impermeável e corta-vento) ou capa de chuva, e um kit de roupas secas dentro de um saco estanque ou tipo zip-loc, usando o bom senso conforme o clima da região. Lembre-se da possibilidade de passar a noite no relento.
A comida extra não precisa nem comentar. Eu mesmo, por exemplo, quando vou para ambientes mais inóspitos, como cavernas molhadas, gosto de levar uma espiriteira (fogareiro leve à álcool) e uma panelinha, suficientes para esquentar água para o chá ou para o macarrão instantâneo. Nada é mais animador do que uma refeição ou bebida quente quando se está com frio. Mas, geralmente, algumas barras de cereais, chocolates, biscoitos ou castanhas são mais do que suficientes.
As pessoas tendem a achar que se a água de um rio está cristalina, então é boa para beber. Ledo engano. Se você estiver em alta montanha, num lugar desabitado, sabe que a água de degelo é pura, mas em ambientes como a Chapada dos Veadeiros, a presença humana é muito intensa para pressupor água potável. Mesmo que você não esteja vendo, a fazenda quilômetros acima do ponto onde você está pode estar lançando no rio dejetos humanos, agrotóxicos, e sempre é possível haver algum animal morto rio acima. Portanto, sempre leve algum sistema de purificação de água com você. No entanto, se não houver como purificar ou ferver a água é melhor arriscar uma diarréia ou hepatite do que ter uma desidratação. Pensando nisso, eu tenho todas as vacinas em dia, inclusive de hepatite, pois estive em locais remotos dos Andes recentemente, onde a incidência de doenças como hepatite não são incomuns. Caso o local aonde você vá tenha pouco ou nenhum acesso a água, leve água extra.
A lanterna deve estar com pilhas novas e dê preferência aos modelos de cabeça, com os quais as mãos ficam livres. Os modelos que usam lâmpadas tipo LED (luz branca) são mais caros, mas são mais econômicos e iluminam mais que as lâmpadas de halogênio (luz amarela). No entanto a luz amarela, apesar de não ser tão intensa e ecônomica, tem uma qualidade de luz melhor para encontrar trilhas.
Em muitos pontos da Chapada dos Veadeiros e de muitas regiões agrestes do Brasil, é possível conseguir sinal de telefone celular, principalmente de pontos mais altos. Procure se informar com as pessoas locais ou com os freqüentadores mais assíduos sobre essa possibilidade. Radiocomunicadores são importantes em grupos grandes, mas podem ser inócuos caso o alcance seja curto ou caso não haja ninguém na escuta em um ponto de controle. Em uma coluna futura falarei sobre radiocomunicação no agreste.
Repelente e protetor solar podem parecer itens supérfluos, mas não são. O desconforto causado por picadas de insetos e queimaduras solares pode ser bem desagradável.
Caso você vá para uma trilha sem guia, ou mesmo com guia, é bom levar uma bússola e o mapa da área que você está visitando, mas é preciso saber se orientar. Em breve escreverei sobre orientação. Um aparelho de GPS pode ser muito útil, mas lembre-se que ele não funciona muito bem em mata fechada e em cânions confinados.
Os mapas da região Centro-Oeste podem ser encontrados no CIGEx (Centro de Imagens e Informações Geográficas do Exército), antigo CeCAuEx, (Centro de Cartografia Automatizada do Exército), que fica em Brasília, na estrada parque Contorno, Km 4,5, Setor Habitacional Taquari, Sobradinho. Vindo de Brasília em direção a Sobradinho, passado o posto Colorado, vire à direita e percorra 4,5 Km que você encontrará o Centro. O telefone é (0xx61) 3415-3880, o horário de atendimento da Mapoteca é de segunda-feira a quinta-feira de 08h30 às 11h30 e de 13h00 às 16h30, e o preço de cada carta é de R$ 20,00. Muitas cartas estão esgotadas, mas eles podem tirar cópias. No momento em que eu escrevia essa coluna, a copiadora do CIGEx estava quebrada, portanto telefone antes para saber da disponibilidade do mapa para não perder a viagem. Mapas de outras regiões do Brasil podem ser encontrados na Supervisão de Documentação e Disseminação de Informações do IBGE, que, em Brasília, fica na W3 Sul Qd. 509, Bloco A, lojas1/5, telefone (0xx61) 3244-4067.
Um canivete multifunção é sempre uma ferramenta muito útil e versátil que pode te ajudar bastante num perrengue.
Por fim, os sacos plásticos para lixo. Como forma de respeito à natureza e conscientização social, leve de volta tudo o que você levou, principalmente o lixo.
Acrescente a estes itens o que você julgar importante. Não é essencial, mas é sempre bom, por exemplo, levar um pouco de papel higiênico e uma pequena pá de jardinagem para cavar um buraco para dejetos humanos sólidos.
O kit de primeiros socorros, assim como o kit de higiene, o isqueiro, os radiocomunicadores, repelentes, pílulas de purificação, protetor solar, celular, mapa e bússola, e canivete são itens que não precisam ser repetidos; podem ser levados coletivamente. Mais uma vez, use o bom senso. Se uma pessoa do grupo já está levando o kit de primeiros socorros, não é necessário que você também leve um.
Para finalizar, quero dizer que essa consciência tem que partir do turista ou praticante. Se você está fazendo a trilha independente de guia, avalie sua experiência e julgue se você é capaz de fazê-lo com segurança e leve seus itens básicos. O guia em geral – aqui faço uma ressalva para excluir o Weverson –, principalmente o menos experiente, não vai exigir do turista que leve itens básicos sob o risco de perder o cliente. Portanto, essa atitude consciente tem que ser tomada por você. A iniciativa deverá ser sua.
Boas trilhas,
Bulha.
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